Evangelho de Jesus: DISCÓRDIA; Mt 10:34; Lc 12:51-53
Roberto Pla
Com termos paralelos e alguns pontos complementares se acha este logion em dois evangelhos canônicos e no profeta Miqueias. Segundo o sentido manifesto parece referir-se Jesus às dificuldades que o conhecimento da Boa Nova pode ocasionar no seio de uma família de cinco membros, mas uma observação algo mais cuidadosa permite descobrir que a divisão ou guerra familiar de que fala aqui, com a surpreendente menção da sogra e da nora, nunca pode constituir o fundamento ou propósito da vinda de Jesus. Tal interpretação é sem dúvida errônea, a mais pueril, e deve ser rechaçada.1
Entendida em seu sentido oculto observa-se que a composição quinária que aqui se propõe para os habitantes da casa, é numericamente igual à que em tempos do AT apontou Miqueias, assim como é idêntica a desintegração que na família se produz, pelo que não é isto imputável ao Jesus neotestamentário, senão enquanto Cristo "oculto" e eterno como Senhor de cada homem desde o princípio dos tempos. O relato parece responder a uma descrição analítica do homem total e do processo que nele sobrevém por causa da semeadura da Palavra, enquanto este homem é a casa pessoal, ou morada comum e unitária de uma consciência.
Os agentes divisionários que o logion menciona são três: o fogo, a espada e a guerra. Acerca da natureza do fogo, que não é outro que o do conhecimento espiritual que como segundo batismo traz Jesus sobre a terra, já estamos informados no estudo do Logion 10.2 . A guerra não é outra coisa mais que a conflagração que enfrenta às diferentes formas de consciência que integram o quinário do homem total. Quanto à espada, sua importância ativa lhe concede Mateus ao ser este o único agente de dissolução que ele menciona e também por sua antiguidade, já que para encontrar a origem da significação há que retroceder à "chama de espada vibrante", posta por Deus, segundo o Gênesis, para guardar o caminho que leva à Árvore da Vida (Gn 3,24).
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Este texto toca um dos mistérios mais guardados pelo povo judeu e pelos primitivos cristãos, segundo pode coligir-se pela precaução em que se envolvem os escassos textos figurados em que deles se fala. No entanto há que celebrar a razão de Mateus por não omitir a espada em sua versão do logion, dado que esta, a espada, é o divisor mais poderoso do quinário humano. A Palavra de Deus cumpre com seu fio penetrante uma função que deve ser executada inexcusavelmente antes de cruzar a porta do Paraíso. A Palavra penetra como uma revelação interior, justamente na fronteira entre o espírito e a alma, e define aos dois habitantes superiores da casa: um, o eleito e o outro, o chamado. Estes são o filho e a filha no relato, ou o Esposo e a Esposa na longa noite do místico, quando na fronteira da alma, esta "busca e não encontra"3 , invadida pela grave nostalgia e agonia de não saber porque nem onde.
A alma, a filha, é a voz que aparece dia e noite na consciência do homem, até o ponto que parece ser identificável como o próprio homem; o espírito, o filho de Deus, que vem de Acima, embora seja a essência eterna e portanto o homem verdadeiro desnudo, permanece a consciência do homem comum como um grande desconhecedor. Se diz que o filho busca sempre a luz, ou que está sempre nela, pois de seu tecido está feito, e que a alma vai sempre até a justiça, desde onde é chamada. Estes são dois caminhos paralelos, e que por tal razão não podem se encontrar até que a Palavra de Deus seja recebida e acolhida com tanto amor que se o permita discernir como espada flamejante e penetrante "até as juntas e medulas" que persistem na alma. Quando tal coisa ocorre — e a espada aparece então como chama viva, fervente — se produz uma cisão decisiva na alma: de um lado, junto ao filho, ficará a parte da alma enamorada da justiça e já "purgada como a prata". Por outro lado, bem enraizados, ainda que mortais, na consciência, nos sentimentos e pensamentos vindos do coração ou da carne e que estão agregados à alma como um tênue vestido do desejo. Esta é a predestinação de todas as almas, segundo o plano de Deus, e por esta razão quando o ancião Simão profetizou sobre Maria como se ela fosse a alma de todos, lhe disse: "sim, e uma espada traspassará a tua própria alma, para que se manifestem os pensamentos de muitos corações." (Lc 2,35)
A cisão da alma consiste em que de um lado está posto o grão e do outro a palha; mas como a consciência não sabe que a palha é palha, mas que somente recebe os sentimentos e pensamentos, chega a identificar-se totalmente com estes sem chegar a discriminá-los como palha. Esta identificação é tão forte e intensa que chega a criar com toda esta palha uma irmã bastarda que confunde com sua própria identidade, quer dizer, que crê que é ela mesma.
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É certo que ambas irmãs tem como obra comum o enfrentamento com sua mãe, a qual dá, desde o princípio, à alma, seu sustento de natureza hílica, de matéria, de corpo segundo a carne; mas ocorre que a filha se aparta de sua mãe quando se fortalece nela o desígnio de alcançar a justiça. Por outro lado, a irmã bastarda à qual o logion denomina "nora", só busca roubar sua mãe, que para ela é sogra, todos os bens temporais que, como natureza, possui; ela interpreta que tais bens são tesouros verdadeiros e o movem a cobiça.
Falta conhecer o quinto personagem da casa, o pai. Há que recordar que o filho, a Palavra, é a luz verdadeira. Se conta da Palavra que "veio a sua casa, aos seus, mas não todos a receberam". Daí vem o enfrentamento do filho com todo aquele que resiste em receber a luz e que se resume no pai deste mundo, como essência temporal. No interior da casa, a consciência recebe as mensagens do filho, que são centelhas de luz; mas tais centelhas são mortíferas para os desígnios temporais deste pai exterior da casa. Estes desígnios são tidos, até certo ponto, pela consciência, como filhos da predestinação por quanto regem as respostas da temporalidade ao conjunto das tendências da alma, em uma forma que recorda o plano de Deus.
Assim se completa este primeiro reconhecimento da antiga divisão de "três contra dois" trazida por Jesus sobre a terra. de um lado estão nesta divisão a nora, a mãe-sogra e o pai, representantes na casa de tudo aquilo que há de passar e que são, por essa mesma condição de ser tempo para a morte, os verdadeiros "inimigos do homem em sua casa". Do outro lado estão o filho e a filha, a partir de então unificados, ao final, feitos um só no banquete de bodas da Vida eterna da Luz.
Emille Gillabert
Quanto mais o psíquico tem a preocupação de se afirmar, mais ele julga provocadora, ou até blasfematória e sacrílega a atitude do pneumático, enquanto ela é simplesmente a expressão de sua paz interior. Jesus se mostrou soberanamente livre em relação à autoridade institucional. Mas ele estigmatizou o erro sem nunca fazer o julgamento de ninguém; no entanto, aqueles que se identificam com os supostos valores que Jesus questiona se sentem visados e condenados, e é para ter paz que eles fazem a guerra. É para ter paz que eles condenaram Jesus à morte.
Quando, por exemplo, o Mestre diz: “Eu vim a este mundo para um juízo; para que vejam os que não veem e para que aqueles que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39), ele valoriza os humildes sufocados pela autossuficiência dos orgulhosos, dando-lhes sua chance, enquanto estigmatiza a atitude daqueles que pretendem deter a verdade mas não têm nenhuma possibilidade de obtê-la por causa de seu fechamento interior. Na realidade, aqueles que veem graças a Jesus, são aqueles que escutam a palavra, escapando assim da morte e do juízo: “Aquele que escuta minha palavra... não é submetido ao juízo” (Jo 5, 24).
Àqueles que buscam, Jesus traz a liberdade na paz, mas ele tem da liberdade uma compreensão que não é a do mundo. Além disso, os homens nunca conseguiram se entender sobre a liberdade. Enquanto se tem a preocupação de se afirmar, se provoca conflitos. O gnóstico, por não estar identificado com a pessoa, pode falar de liberdade com conhecimento de causa. Mas por mais que ele diga: “Eu não sou teu inimigo; eu não sou o inimigo de ninguém”, não deixa de ser verdade que aquele que tem medo dele o acredita subversivo e perigoso; então, para não ser perseguido, o adversário o persegue. Ele justifica a guerra em nome de uma paz supostamente ameaçada, em nome da ideologia, da religião, da pátria etc. “Vocês querem me matar porque minha palavra não entra em vocês” (Jo 8, 37), diz Jesus aos judeus que o ameaçam.
É assim que o gnóstico é a causa de conflitos e de guerras, embora ele seja pacifista no verdadeiro e único sentido do termo. Sem querer, por sua única presença, ele faz eclodir a discórdia no seio de uma mesma família. Como ele não reconhece finalmente autoridade senão a de seu Mestre interior, a sua insubordinação é julgada insuportável. Quando Jesus afirma: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8, 57), os judeus pegam pedras para apedrejá-lo. No entanto, nada pode fazê-lo se desviar em sua visão do Uno. Ele é verdadeiramente o solitário, o monachos. Poder-se-ia acrescentar: o blasfemador. As perseguições contra os gnósticos, os sufis, os cátaros e tantos outros testemunham justamente a incompreensão radical que o psíquico demonstra em relação ao pneumático.
Encontra-se o presente logion com algumas variantes em Mateus (10, 34-36) e em Lucas (12, 51-53). No entanto, o final que dá todo o seu valor ao logion: “E de pé, eles serão monachos” falta em ambos.
Jean-Yves Leloup
A Paz que o Cristo vem nos propor não é a Paz dos tranquilizantes ou dos euforizantes, mas a Paz essencial, não dependente das circunstâncias favoráveis que podem nos cercar. É a paz do Ser. Para descobrir esta Paz, “que nada nem ninguém pode nos tirar”, é preciso às vezes passar pelo fogo, a espada, a guerra, ou seja, passar pela purificação, o discernimento, a polêmica (polemos: guerra em grego) que nos faz sair de nossas falsas seguranças.
O Cardeal Newman se espantava um dia com a palavra bíblica: “Tu nos provaste, Senhor, como a prata sob o fogo do fundidor.” Ele decidiu ir ver um fundidor trabalhando e lhe perguntou: “Quando o senhor sabe que a prata está pronta, que ela está pura, liberta de sua ganga grosseira?” Este último lhe respondeu: “Eu sei que a prata está madura quando, me inclinando em sua direção, eu posso ver nela se refletir os traços de meu próprio rosto.”
Quando somos “provados pelo fogo” é bom nos lembrarmos de que o Pai inclina em nossa direção seu rosto a fim de que nos tornemos capazes de refletir seus traços — como o Filho...
O gládio ou a espada simboliza o discernimento (cf. São Paulo): sair do que nos atola, do que nos aliena, isso também não se faz sem combate (polemos), é preciso às vezes se opor às pessoas de sua família para ter acesso à autonomia. O gládio deve cortar o cordão umbilical. É preciso cortar na carne viva, às vezes, de nossos apegos mais legítimos para nos tornarmos realmente o que somos. Assim, quando Jesus diz que ele vem nos trazer o fogo, o gládio, o conflito, ele nos dá os instrumentos de nossa libertação, ele nos ensina como sair de todas estas falsas identificações ou imagens de nós mesmos às quais nos apegamos, mas que nos impedem de alcançar nossa realidade, nua, sem ilusões...
Aquele que atravessou estas provações libertadoras se levantará “solitário e simplificado”, duas palavras para traduzir uma palavra única difícil de ser traduzida: monachos. O monachos, mal traduzido por “monge”, não é somente um celibatário — é aquele que tende para o Uno (monos), para a unificação de todas as suas faculdades: corpo-coração-espírito, a fim de se tornar como o filho “monogene” de um só gene, de um só jorro voltado para o Pai — (cf. o Logos pros ton Theon de que fala o prólogo de São João).
Esta unificação passa pela solitude e pela simplificação. A via gnóstica é uma via onde nos reencontramos solitários, não por falta de amor ou de amizade, mas porque “nas alturas não se aglomera”, e que a uma certa profundidade de verdade se está sozinho diante de si mesmo, diante de Deus. Esta solitude não separa do outro; pelo contrário, ela permite encontrá-lo também em sua profundidade, em sua essencial solitude.
Os gnósticos não são homens de multidão. A vida associativa ou comunitária não é o gênero deles. Não é por orgulho que eles fogem das massas, mas por exigência, recusa da superficialidade. Sabe-se também que os encontros mais íntimos, os mais profundos, são os dos verdadeiros solitários.
Suportar a solitude vai nos conduzir igualmente a um estado sem ego. Pois, na solitude, não há o olhar do outro para nos confirmar em nossa existência (confirmação agradável ou penosa, pouco importa), o que explica o medo da grande maioria diante da solitude...
Mas estar sozinho não é suficiente, é preciso ainda ser simples — ou seja, etimologicamente, “sem dobra”, sem retorno sobre si mesmo. Todo o trabalho do fogo e do gládio é o de nos desdobrar, até em nossas dobras mais secretas, a fim de reencontrar nossa simplicidade original, nossa identidade verdadeira, o ouro puro, nosso puro “eu sou” libertado da ganga de suas representações ilusórias, e ser assim “o homem nobre”, “o filho de Deus” de que fala mestre Eckhart.
Philippe de Suarez
Mt 10:34-36 // Lc 12:51-53
A tentação entre os canonistas de ampliar o texto original tomando emprestado de ΑΤ é verificada mais uma vez nos textos correspondentes ao presente logion. O logion se abstém de declarar o status das pessoas que estão divididas dentro da mesma família. Por outro lado, os escritores dos textos canônicos têm uma oportunidade pronta em Mi 7:6 para ceder à inflação verbal. O profeta diz: "O filho insulta o pai, a filha se levanta contra a mãe, a nora contra a sogra...".
Pelo contrário, o acréscimo que a Bíblia de Jerusalém (BJ) acredita discernir no v. 52 de Lc. deve ser levado em consideração especial com relação ao texto do Evangelho de Tomé. Além disso, o verbo lançar em Mt, que a BJ dá como um verbo semitizante, deve ser considerado como um verbo copiador (cf. 73.5 n e 247 a).
Karl Renz
Commentaries On The Gospel Of Thomas. Excerpts from the Marsanne talks, 2015
Não pode haver satisfação em objetos. E nos desencantarmos totalmente da ideia de que algum dia seremos capazes de encontrar satisfação neste mundo objetivo é o que se chama “o retorno interior”: voltarmo-nos para o que é a fonte, para a própria perfeição.
Procuramos fora sem cessar e não conseguimos nos encontrar. Então olhamos para dentro ad infinitum e ainda assim não conseguimos nos encontrar. Então, descansamos no não-encontrar. E isso é a resignação total, não buscamos mais o que somos. E neste descanso, nesta total imobilidade, há perfeição. Tudo o que estávamos procurando está aí, sem qualquer busca. O buscador já era o que ele estava procurando.